E dezoito anos se passaram desde que o vovô se foi. Partiu
num março feio e triste de 1995 e nos deixou com uma saudade que nunca se
esvaiu, pelo contrário, completou sua maioridade. Lembro de um Natal distante em
meados da década de 80, quando vovô surgiu lá na Varginha* vestido de Papai Noel
e nós (os netos mais novos, pequenas crianças), gritávamos em uníssono:
“Nossa, o vovô é o Papai Noel!”
Pobres de nós! Mal sabíamos que não, vovô não era o Papai
Noel. Vovô não era o bom velhinho. Nos treze anos em que pude desfrutar da sua
companhia, vovô fez-se mais que um bom velhinho em minha vida. Vou explicar:
Nunca vi vovô brigar. Nunca vi vovô gritar ou se alterar.
Vovô era a tranquilidade e serenidade em pessoa. No máximo das vezes, ele fazia
gestos engraçados colocando a língua pra fora atrás de vovó enquanto ela
(explodindo de vida que era), o xingava por alguma trapalhada sua.
Sim, vovô era trapalhão! Nós netos, sabíamos muito bem que
era proibido pedir ao vovô que trocasse as lâmpadas subindo numa escada ou que
subisse no telhado para pegar a peteca que havia caído ali. Seria tombo na certa!
Vovô se atrapalhava tanto que certa vez conseguiu (pasme!) prender a orelha na
porta do seu quarto. Uma vez enquanto pescávamos, pude testemunhar vovô
pisando em sua mão para subir num barranco...
Ah! As pescarias com o vovô...
Foram tantas, mas sinto hoje que foram tão poucas! Vovô nos ensinou a pescar
traíras, a iscar o anzol, a escamar os peixes, limpar, colocá-los num galho de
árvore que nos ensinou a arrancar, propício pra tal. Vovô nos ensinou muitas
coisas em nossas pescarias, vovô nos ensinou sua essência: a Paciência.
Quando eu ficava atordoado vendo meus primos pescarem e eu sem pescar nenhum
peixe, querendo trocar de lugar, vovô dizia:
“Calma! Paciência! Fica aí... fica quietinho aí que ela vem!” e ela sempre
vinha!
Vez ou outra vovô aparecia lá em casa e se aquietava no
sofá. Dizia para minha mãe:
“A Lourdes inventou de arrumar a casa hoje e falou pra eu sair...”
E passava o dia ali, dormindo tranquilo e despreocupado com a vida.
Em dias de domingo, vovô deitava em seu sofá para sestear e
um bando de netos se amontoava ao redor dele e ficávamos brigando para saber
quem iria pentear seus cabelos. E vovô dizia com mansidão:
“Calma... Um de cada vez...” e éramos muitos!
Então cada um tinha o seu momento, penteando os cabelos do vovô. E ele ia
fechando os olhos de mansinho, numa calma e sossego que eram só seus, como
fazia seu passo-preto quando vovô com os dedos, acariciava sua cabeça.
Quando acordava, nos levava ao mercado do Antônio Espíndola a fim de comprar
pão pro café da tarde. Voltávamos com chocolates, pirulitos, balas, chicletes,
sorvetes...
Sempre que ia pra Varginha* vovô enchia seu Corcel cinza de
netos. Bem cedinho, antes do sol nascer, nos levava ao curral (nós com os copos
de alumínio abarrotados de chocolate em pó) e enchia um a um de leite fresco,
tirado na hora das tetas das vacas. O cheiro do curral, da despedida da dama da
noite, do orvalho na grama... era cheiro de felicidade!
Depois saíamos para brincar e vovô pegava seu cortador de gramas e só parava
para separar uma ou outra briga que ocasionalmente acontecia.
Mais tarde saía conosco lá pro alto do pasto, onde ficávamos empinando
papagaios até a hora do almoço. Depois descíamos para pescar e quando voltávamos,
depois do jantar, ficávamos altas horas jogando o que ele mais gostava nos
jogos de carta e nos ensinou com maestria: Buraco...
E nossa infância foi passando assim, com o vovô...
De repente vovô se preparou pra partir numa doença dolorosa.
Vovô não se foi assim, bruscamente. Ele
decidiu partir devagar, tomou o sofrimento pra si, para que não sofrêssemos tanto,
para que pudéssemos de alguma forma, nos preparar e nos despedir. Eu conheço o vovô. Ele preferia sofrer ao ver
os outros sofrerem.
E assim ele fez... até que foi-se, num março feio e triste de 1995.
Volto a lembrar daquele Natal, quando vovô chegou vestido de
Papai Noel. Se alguém chegasse e me perguntasse ali:
“O que significa vovô para você?”
Eu responderia, imbuído de toda
sinceridade e sabedoria inocente que a vida ainda não havia me arrancado:
“Vovô é o masculino de Paz...”
...
Hoje, vinte e tantos anos depois daquele Natal, relendo este
texto e destituído daquela sabedoria inocente, mas com toda sinceridade de alma
e lágrimas saudosas no rosto:
“Vô, você faz falta pra caralho!”
* Fazenda Mourão - São José da Varginha - MG